terça-feira, 27 de maio de 2014

O mendigo e o lobo

(O Ministério dos Blogs adverte: esse é um post de ideias soltas e um tanto desconexas, mas a autora quis escrever mesmo assim. Em caso de sintomas de confusão mental, não seja rude fechando a página e continue lendo mesmo assim. Se os sintomas persistirem, uhn, foi mal aí)

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Ontem foi feriado nacional, Memorial Day. Nunca tinha ouvido falar nessa data e, portanto, não sabia do que se tratava. Comecei a ter alguma ideia quando vi pipocarem na televisão propagandas exaltando os soldados, heróis da pátria. Fui pesquisar na internet e vi que é isso mesmo... Um dia para lembrar e homenagear todos os membros das forças armadas que morreram exercendo o serviço militar durante alguma das (muitas) guerras em que os Estados Unidos se envolveram.

Como vocês todos sabem, esse é um país com um espírito um tanto quanto bélico e, assim, as forças armadas ocupam um lugar especial no coração da nação (óim!). No aeroporto de LaGuardia, por exemplo, os letreiros luminosos ficam sempre mostrando a mensagem "God bless our troops" (Deus abençoe as nossas tropas), o que eu sempre achei muitíssimo curioso.


Mas enfim... Com tudo isso, sempre pensei que os Estados Unidos tratassem muito bem os seus soldados. E aí vem uma questão curiosa.

(vou fazer umas voltas aqui, mas já chego no ponto)

Nos metrôs de Nova York, a gente vê de tudo. De tudo mesmo. Madames sentadas ao lado de prostitutas. Gente dormindo (e babando) no ombro de desconhecidos. Mariachis. Cantores de rap. Cantores de ópera. Dançarinos. Vendedores. É uma diversão.

E também se vê muito sem-teto. No inverno, então, nem se fala. Meu sobrinho de 14 anos veio pra cá em janeiro e concluiu que, se fosse sem-teto em NY, moraria no metrô. E ele não estava nem um pouco errado: é um lugar quentinho e seguro.

Mas eu to dizendo tudo isso pra contar duas coisas:

1) Os moradores de rua de NY me chamam muita atenção por várias questões: (a) eles são muitos, (b) em geral usam boas roupas, e (c) as pessoas dão dinheiro pra eles. O primeiro ponto tem uma série de explicações possíveis e eu não vou explorá-las, então vamos para o próximo. Já pensei muito sobre essa questão das roupas e consegui concluir apenas que quem não tem boas roupas não sobrevive a um inverno tão rigoroso, mesmo dentro do metrô. Então, é possível que ocorra uma espécie de seleção natural (que de natural não tem nada). Minha outra hipótese é que essa também pode ser uma (boa) consequência do consumo desenfreado que há por essas bandas: como as pessoas compram muitas coisas, também doam muitas outras, então os moradores de rua acabam se beneficiando. Com relação ao item c, não sei por que isso acontece, mas a diferença para o Brasil é gritante: aqui as pessoas ouvem as histórias do povo que tá pedindo dinheiro, em vez de só virar a cara, e contribuem com uma grana. Não importa se a pessoa está vendendo alguma coisa ou se só está pedindo mesmo. Não me lembro de ter visto alguma vez em que ninguém deu nada. Não faço ideia do por quê isso acontece, mas é impossível não notar. Quando alguém entra no metrô e começa a falar (ou cantar ou dançar ou...), a galera já vai colocando a mão no bolso.

2) As pessoas contam as histórias mais variadas quando estão pedindo dinheiro, mas tem uma que é bem frequente, e eu vou resumir assim: "eu era um soldado das forças armadas, servi por x anos, fui mandado para o país y, fiquei lá por z tempo e, quando voltei para os EUA, fui dispensado...agora não consigo arrumar emprego, não tenho apoio nenhum do exército ou do governo, fiz tantas dívidas que perdi minha casa e não me resta nenhum alternativa a não ser estar aqui". Claro que eu nunca pedi comprovante de que as pessoas realmente eram das forças armadas, mas não me parece que elas estejam mentindo nem que contem essas histórias para gerar comoção (já que, como eu disse antes, as pessoas sempre dão dinheiro).

Então aqui vem o ponto a que eu queria chegar. Se as histórias são mesmo verdade, tem algo de muito incoerente nisso tudo... Tenho pavor dessa idolatria às forças armadas, mas, se é pra idolatrar, então que façam o serviço completo. Virar as costas para os caras e depois fazer propagandas estilo Zaffari no Memorial Day é muito fácil. E muito feio. E muito triste também.

Acho que, no fim das contas, o que ameniza a hipocrisia do governo é o caráter do cidadão do comum...

Esses tempos eu estava no metrô e um rapaz entrou, contou essa história sobre as forças armadas e sobre como a vida dele tava ferrada, que não tinha onde morar e tudo mais, e disse que estava vendendo balas, bolachas e afins para se sustentar. Algumas pessoas compraram e, então, um sem-teto que estava deitado no canto do vagão resmungou: "to com fome". Na hora pensei: "putz, e agora?". Os dois completamente quebrados, um pedindo comida, o outro vendendo pra não se afundar completamente. Eu não tinha a menor ideia do que ia acontecer, qualquer resposta seria compreensível. O vendedor, no entanto, nem sequer titubeou: foi até o rapaz deitado e perguntou "o que tu gostas de comer? gosta de bolacha? eu tenho oreo, tenho também um sanduíche, o que tu preferes?". O cara respondeu alguma coisa, e ele entregou um pacote de oreo ao sujeito deitado. Antes de ir embora, ainda completou: "ninguém passa fome perto de mim, se tu me encontrares outra vez, em qualquer lugar, e estiveres com fome, fala comigo".

Daí tu ficas pensando... Putz, velho, a esperança não é muita, mas talvez, só talvez, a humanidade ainda tenha algum jeito.

sábado, 26 de abril de 2014

Muito além do que se vê


Uma das melhores coisas dessa experiência nos Esteites é que estou certa de que fiz alguns amigos pra vida toda. Um desses amigos é a Lisa, da África do Sul. A Lisa é psicóloga, como eu, e nos conhecemos porque ambas somos bolsistas da Fulbright.

Mas antes de falar sobre a Lisa, deixa eu contar uma historinha.

Desde pequena eu sempre me preocupei com deficiências físicas, especialmente com não poder caminhar, ouvir ou falar. Essas três coisas sempre me assustaram muito, mas eu costumava pensar que nada deveria ser pior do que ser cego, por todas as limitação que não poder enxergar impõe.

Bom, a minha amiga Lisa é cega. E para a Lisa não existem limites.

A Lisa viajou da África do Sul para os EUA com o marido, Pieter, e com o Baggy, seu incrível cão guia. Pieter ficou só por uma semana em New Haven e depois foi embora. Ele veio só pra mostrar a cidade e se assegurar de que a Lisa saberia como ir aos lugares sozinhas. O Baggy ficou.


Em uma dessas coincidências da vida, a Lisa e eu nos conhecemos exatamente no dia em que o Pieter foi embora. Ela estava um pouco chateada/preocupada e eu me ofereci pra caminhar com ela e com o Baggy até a parada de ônibus. Nós nos tornamos amigas imediatamente e, curiosa como eu sou, comecei a fazer milhares de perguntas: Quando é que tu perdeste a visão? Como foi? Como é que tu sabes qual nota tens que pegar quando vais pagar algo? É melhor caminhar com um cão guia ou com uma bengala? Como é que tu sabes onde estás e para onde tens que ir? Muitas perguntas. Ela riu e respondeu todas. A Lisa perdeu a visão quando tinha por volta de 19 anos. Óbvio que foi muito difícil, mas ela aprendeu a conviver com isso. Nos Estados Unidos, as cédulas têm todas o mesmo tamanho, então ela baixou um aplicativo no celular que reconhece as notas. Pra não ter que usar o aplicativo cada vez que vai pagar algo, ela dobra cada nota de um jeito específico antes de sair de casa, então sabe, apenas pelo formato da dobradura, se está segurando uma nota de 1, 5, 10 ou 50, por exemplo. A questão sobre cão guia versus bengala foi fácil de responder: além de ser um baita (e lindo!) companheiro, o Baggy desvia de todos os obstáculos, o que a deixa mais confidante pra andar na rua. No que diz respeito a como ela sabe onde está e pra onde tem que ir, ela contou que o Pieter a fez memorizar cada rua da cidade antes de ir embora. Sinceramente, eu não acredito… A minha teoria é de que a Lisa tem um GPS interno.

Sério! Uma vez estávamos saindo de um restaurante e perguntei pra ela: “vais pra esquerda ou pra direita?”. Ela respondeu: “pra esquerda, e tu?”. Disse que não tinha certeza e peguei meu celular para conferir no mapa. Ela riu e perguntou pra onde eu estava indo. Quando respondi, ela replicou prontamente: “ah, tu também vais pra esquerda, vem comigo e eu te mostro pra onde tens que ir”. Nós rimos até não poder mais. Que humilhação…

Teve também um dia engraçado em que resolvemos ir a um restaurante japonês. O chef aparentemente gostava de criar tipos (muito) diferentes de sushi, e nós não podíamos escolher, então não tínhamos ideia do que esperar. Quando os pratos finalmente vieram, a Lisa naturalmente me pediu para descrever os sushis. Olha… Em Português já teria sido difícil. Em Inglês foi simplesmente impossível. As minhas descrições eram algo como: “bom, tem arroz, talvez algum tipo de peixe, e alguma coisa vermelha e estranha, meio gostamenta, em cima de tudo… só come”. Não ajudei muito, mas nos divertimos horrores.


A Lisa ficou nos EUA por quarto meses e eu aprendi muito com ela.

Ela queria ir a NY antes do Natal para “ver as luzes” e conseguiu. Ela viajou para a Disney. Ela explorou New Haven. Ela fez amigos.

A Lisa é a pessoa mais corajosa que eu já conheci. Ela me ensinou que os nossos limites estão todos dentro da gente e que cabe a cada pessoa decidir o que fazer com eles. Ela me mostrou que, mesmo quando se está assustado, basta dominar o medo e se consegue ir tão longe quanto se queira. E, mais importante do que tudo, ela me ensinou que o importante não é enxergar, mas sentir.


Obrigada, Lisa. Sinto muito a tua falta.