domingo, 22 de setembro de 2013

New Haven (parte I): Uma cidade, várias realidades

Esta é a primeira de uma série de postagens sobre a cidade em que estou morando. Fundada em 1638, New Haven está na parte litorânea do estado de Connecticut e fica a duas horas de trem de Nova York (ao sul) e a duas horas e meia de Boston (ao norte).


Antes de vir para cá, eu imaginava encontrar uma situação parecida com a de Princeton, cidade que tem o mesmo nome da universidade que abriga e que praticamente se resume a ela. Mas New Haven não é assim tão pequena. Sim, ser a casa de Yale é o principal cartão de visitas de New Haven, mas a cidade não se limita ao campus. Cerca de 130 mil pessoas moram por aqui e apenas 11 mil delas são alunas da universidade. Esse número fica ainda mais impactante se considerarmos a zona metropolitana (a Grande New Haven), que concentra mais de 800 mil pessoas.

O que acaba acontecendo, então, é que existe uma divisão óbvia aqui na cidade: de um lado, tudo o que é ligado à universidade, do outro, todo o resto.

Ainda no Brasil, quando estava procurando lugar para morar, recebi conselhos de várias pessoas sobre os melhores locais para se viver por aqui. Me chamou atenção o fato de elas terem sido unânimes em dizer que há um linha muito bem delimitada (mesmo que imaginária) que separa os locais "seguros" dos "não tão seguros assim". Não tinha muita noção do que isso significava, mas por via das dúvidas resolvi seguir o conselho.

Chegando aqui, entendi.

Para simplificar, é como se existisse uma bolha ao redor da universidade.

É uma bolha relativamente grande, então é super possível viver apenas dentro dela. Mas toda bolha tem bordas, certo? Pois então... Ainda estou explorando tudo por aqui, mas até o momento identifiquei um local que é mais do que uma borda, é um ponto de intersecção interessantíssimo entre os dois universos de New Haven: o Green.

O Green, como o nome sugere, é verde. Rá!


Sabe aquela praça, que a gente diz que existe em todas as cidades pequenas do Brasil? Pois é, aqui também tem, só que eles chamam de "common". Em vez de ser redondo, como normalmente são as nossas praças centrais (na verdade acabei de me dar conta que não sei se a maioria delas é redonda, mas a de Pelotas é...rsrs), o Green é retangular. Ao redor dele a gente encontra uma igreja (óbvio), bancos, biblioteca, prédios da universidade, sociedades secretas e... o ponto de ônibus central da cidade.

E aí é que reside o segredo.

New Haven é uma cidade bem plana, pelo menos na zona central, então é tranquilíssimo andar de bicicleta e a pé. Além disso, para quem mora um pouco mais longe (ou só está com preguiça mesmo), a universidade oferece uma rede invejável de shuttles gratuitos (que são fantásticos, by the way, mas vou fazer um post só sobre eles mais adiante).

O que isso significa?

Significa que a maior parte da comunidade acadêmica não precisa utilizar os ônibus comuns. Normalmente, aqueles que optam por morar longe da universidade, e portanto fora da rede coberta pelos shuttles, têm carro. Logo... Os ônibus são do povão.

E o povão, nesse caso, tem um perfil que salta aos olhos de qualquer um que já tenha passado pelo Green. O povão é negro, o povão é pobre, o povão é gordo. Sim, o povão é gordo.

Quando eu visitei Princeton, fiquei totalmente sem entender de onde vinha aquela ideia de que os norte-americanos são gordos. Todas as pessoas que eu vi por lá eram atléticas e adoravam praticar exercícios físicos. Então acabei ficando com cara de...

"Ué, me enganaram?"

Mas, e sempre tem um mas, lembrem que a cidade de Princeton se resume à universidade, o que evidentemente quer dizer que lá não existem pobres.

O mesmo princípio se aplica à bolha de New Haven: dentro da bolha é muito difícil ver algum obeso. Não que seja impossível, claro que não, mas não é algo comum. Quando se chega no Green, no entanto, difícil é encontrar alguém magro. Em uma das minhas pernadas por lá, contei 3 obesos em cadeiras de rodas. Claro que não fui perguntar por que eles estavam em cadeiras de rodas, mas desconfio seriamente que a obesidade seja a causa, e não a consequência, da falta de mobilidade.

Mas então, pra encurtar um pouco a história, que esse post já está ficando grande, três pontos sempre me fazem ficar pensando quando vou a Green:
1) Como eu sempre acabo vivendo dentro de bolhas, independente de onde estou (é assim no Brasil, foi assim em Angola e está sendo assim aqui nos Estados Unidos).
2) A força da associação entre pobreza e cor da pele, que é tão inegável aqui quanto no Brasil, e que diz muito da (falta de) igualdade de oportunidades para brancos e negros nos dois países.
3) A existência da associação entre pobreza e obesidade, que (ainda) não me chama tanta atenção no Brasil, mas que é escancarada aqui. Se por um lado essa associação é fácil de explicar, por outro, a explicação não faz nenhum sentido na minha cabeça: em New Haven são necessários em torno de 10 dólares para pagar por um almoço bom e saudável, mas com 1 dólar é possível comprar dois sanduíches no McDonalds.

Daí complica, néam...

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* A foto do green é de Michael Melford e foi retirada da Yale Alumni Magazine. A foto da bolha é de Sarai Fotography (assim, com f mesmo) e foi retirada deste flickr. O desenho do "ué, me enganaram?" é da animação Up, da Pixar.

sábado, 14 de setembro de 2013

Carta aberta aos pais do Samuel

Prólogo

Para quem não teve a oportunidade de conhecê-lo, resumo dizendo que o Samuel é a figura mais emblemática da Psicologia da UFRGS e ontem foi desbravar outros pagos. Não conseguimos nos despedir, mas isso talvez não fosse mesmo necessário porque ele vai seguir por aqui por muito tempo. Peço licença agora para me dirigir aos pais dele porque... Não sei por quê. Acho que porque eu gostaria tanto de abraçá-los que até dói. Mas não posso, então escrevo.



Carta aberta aos pais do Samuel

Ontem eu passei o dia inteiro chorando, ontem o dia doeu. Não os conheço pessoalmente, mas gostaria muito de ter estado com vocês para poder levar meu abraço. Eu não consigo nem imaginar o tamanho da dor que vocês estão sentido, mas estou mandando as minhas melhores energias para que vocês consigam, em meio a tanta dor, encontrar algum consolo por terem dado origem a um guri que fez desse nosso mundo um lugar melhor para se viver.

Vejam bem, eu pouco conhecia o Samuel. Mas também conhecia muito o Samuel. Nos meus quase 10 anos de Instituto de Psicologia, não consigo pensar em uma pessoa que tenha cativado tanto quanto ele. Não há outra pessoa que tenha circulado tão bem em todos os espaços daquele Instituto e, acreditem, essa não é uma tarefa fácil. Mas o Samuel não se importava, não pedia licença, ele circulava e pronto. E, de repente, estava em todos os lugares, sendo admirado, sendo amado.

Na impossibilidade de estar aí fisicamente ontem, tentei me conectar como era possível, então passei a acompanhar as mensagens na internet. E elas não pararam de chegar. 

O que a gente mais ouve quando alguém é tirado assim, tão de repente, do nosso convívio é: “puxa, eu não tive tempo de dizer tudo o que gostaria”, “eu não disse o quanto ele era importante”, “eu não disse o quanto o amava”. Com o Samuel, não. Com o Samuel foi o inverso. Muitas pessoas disseram, outras tantas pensaram: “eu te amo, te admiro e o que me consola é que eu te disse isso tudo”. Porque o Samuel provocava a expressão do que há de melhor nas pessoas.

O Viktor Frankl, um psiquiatra austríaco, costumava dizer que se a vida tem um sentido, então o sofrimento necessariamente também o terá. E, no meio de tanta dor, comecei a procurar um sentido em todo esse sofrimento. E acabei encontrando o danado no meio de todas as mensagens que li ontem.

A vida do Samuca foi tão breve quanto intensa e, em toda essa intensidade, ele conseguiu transmitir mensagens de paz, de amor, de companheirismo, de respeito à natureza, de luta por ideais. E talvez toda essa dor que estamos sentindo agora sirva para potencializar o legado que ele nos deixou. E talvez esse seja o sentido de todo esse sofrimento: continuar lutando, com ainda mais força, para construir o mundo com o qual o Samuca sempre sonhou e pelo qual sempre lutou.

(hoje comecei a ler a autobiografia do Gandhi, da qual ele tanto falava)

O Samuca era Batman, era Super-Homem. Exemplo. Força. Coragem.
O Samuca era amor. O Samuca é amor.
Muito obrigada por terem nos dado o Samuel.
Vocês podem ter certeza de que ele seguirá vivendo em todos nós.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O 11 de Setembro

11 de setembro é uma data macabra no meu calendário: golpe militar no Chile em 1973, derrubada das torres gêmeas em 2001 e, pasmem!, lançamento da primeira revista Veja em 1968. Não tem como gostar desse dia. 

Pois eu estava um pouco na expectativa de como seria viver um 11 de setembro nos Estados Unidos. Como seriam as homenagens? O que noticiariam as capas dos jornais? As pessoas falariam sobre o assunto nas ruas? O dia amanheceria mais triste, mais sério, mais raivoso?

E eis que o dia 11 raiou e, não fosse a internet, não fosse a minha curiosidade ou mesmo o meu pesar, seria um dia como qualquer outro. Eu tive aula de manhã, então não puder ligar a televisão para acompanhar as solenidades que ocorreram no Marco Zero e na Casa Branca, e isso talvez tenha feito diferença na minha percepção. Mas não se falou nada na universidade, não ouvi ninguém comentando na rua, não vi nenhuma menção ao World Trade Center nas capas dos jornais. Se eu estivesse em Nova York, talvez fosse diferente, não sei. Só sei que isso me fez ficar pensando em todas as atrocidades que o ser humano comete e em como isso afeta, ou não, as pessoas. Chegamos em um ponto de barbárie que fez com que vidas/mortes virassem números frios. E falamos sobre eles como se fossem banais:

“Carro bomba mata 3 e fere 17 em um ataque na Faixa de Gaza”
“Toda vez é isso, não tem notícia nova?”

“2997 pessoas morreram nos ataques do 11 de setembro”
“Bem feito, isso não é nada, mais de 200 mil morreram com as bombas atômicas que eles jogaram em Hiroshima e Nagasaki”

Quem nunca ouviu (ou mesmo falou/pensou) uma frase como essas? Eu já.

No 11 de setembro de 2001 eu tinha 16 anos e estava em aula, em Pelotas, no momento dos ataques. Havia uma televisão na sala e casualmente alguém a ligou, provavelmente em um intervalo, enquanto as torres ardiam. Todos ficaram vidrados, inclusive o professor (de História, por sorte). Ninguém sabia o que estava acontecendo. Ninguém sabia que era um ataque terrorista. Ninguém entendia o que aquilo significava. E, do alto da nossa adolescência ignorante e inconsequente acostumada com os filmes da Sessão da Tarde, os comentários eram os mesmos: todos queríamos ver as torres desabando.

É, eu sei. Que horror.

Mas a vida é assim, cada um tem seu tempo. E o meu tempo demorou 10 anos.

Porque foi só 10 anos depois, na minha primeira vinda aos Estados Unidos, que eu fui entender, entender mesmo, o que tudo aquilo significou. Ou, se preferirem, foi só 10 anos depois que eu consegui elaborar, internamente, um significado para aquilo tudo.

E eu fiz isso ao visitar o Marco Zero, o local onde as torres ficavam.
Eu fui lá.
E o meu chão sumiu.









De repente, aqueles 2997 números frios foram substituídos por histórias, por tristeza, por saudade, por amor.


E então eu chorei. E chorei e chorei e chorei. Compulsivamente. E, chorando, pedi perdão. Não pra Deus, que eu não sei se ele existe, mas para o mundo, e para aquelas famílias, pela minha estupidez, pela estupidez de todos nós.


Porque a verdade é que não importa se morreram 2997 pessoas, se foram 200 mil ou se foram duas. Não importa se elas moravam em um país que comete as maiores atrocidades ou se viviam em um santuário de paz.

O que importa, o que importa de verdade, é que cada uma delas era o mundo na vida de alguém. Provavelmente na vida de muitos alguéns. E, pra esses alguéns, as homenagens na televisão, as capas dos jornais e as conversas nas ruas são irrelevantes. Pra esses alguéns, todo dia é 11 de setembro.

E como tá cheio de 11 de setembro nesse nosso mundo cruel.