sábado, 26 de abril de 2014

Muito além do que se vê


Uma das melhores coisas dessa experiência nos Esteites é que estou certa de que fiz alguns amigos pra vida toda. Um desses amigos é a Lisa, da África do Sul. A Lisa é psicóloga, como eu, e nos conhecemos porque ambas somos bolsistas da Fulbright.

Mas antes de falar sobre a Lisa, deixa eu contar uma historinha.

Desde pequena eu sempre me preocupei com deficiências físicas, especialmente com não poder caminhar, ouvir ou falar. Essas três coisas sempre me assustaram muito, mas eu costumava pensar que nada deveria ser pior do que ser cego, por todas as limitação que não poder enxergar impõe.

Bom, a minha amiga Lisa é cega. E para a Lisa não existem limites.

A Lisa viajou da África do Sul para os EUA com o marido, Pieter, e com o Baggy, seu incrível cão guia. Pieter ficou só por uma semana em New Haven e depois foi embora. Ele veio só pra mostrar a cidade e se assegurar de que a Lisa saberia como ir aos lugares sozinhas. O Baggy ficou.


Em uma dessas coincidências da vida, a Lisa e eu nos conhecemos exatamente no dia em que o Pieter foi embora. Ela estava um pouco chateada/preocupada e eu me ofereci pra caminhar com ela e com o Baggy até a parada de ônibus. Nós nos tornamos amigas imediatamente e, curiosa como eu sou, comecei a fazer milhares de perguntas: Quando é que tu perdeste a visão? Como foi? Como é que tu sabes qual nota tens que pegar quando vais pagar algo? É melhor caminhar com um cão guia ou com uma bengala? Como é que tu sabes onde estás e para onde tens que ir? Muitas perguntas. Ela riu e respondeu todas. A Lisa perdeu a visão quando tinha por volta de 19 anos. Óbvio que foi muito difícil, mas ela aprendeu a conviver com isso. Nos Estados Unidos, as cédulas têm todas o mesmo tamanho, então ela baixou um aplicativo no celular que reconhece as notas. Pra não ter que usar o aplicativo cada vez que vai pagar algo, ela dobra cada nota de um jeito específico antes de sair de casa, então sabe, apenas pelo formato da dobradura, se está segurando uma nota de 1, 5, 10 ou 50, por exemplo. A questão sobre cão guia versus bengala foi fácil de responder: além de ser um baita (e lindo!) companheiro, o Baggy desvia de todos os obstáculos, o que a deixa mais confidante pra andar na rua. No que diz respeito a como ela sabe onde está e pra onde tem que ir, ela contou que o Pieter a fez memorizar cada rua da cidade antes de ir embora. Sinceramente, eu não acredito… A minha teoria é de que a Lisa tem um GPS interno.

Sério! Uma vez estávamos saindo de um restaurante e perguntei pra ela: “vais pra esquerda ou pra direita?”. Ela respondeu: “pra esquerda, e tu?”. Disse que não tinha certeza e peguei meu celular para conferir no mapa. Ela riu e perguntou pra onde eu estava indo. Quando respondi, ela replicou prontamente: “ah, tu também vais pra esquerda, vem comigo e eu te mostro pra onde tens que ir”. Nós rimos até não poder mais. Que humilhação…

Teve também um dia engraçado em que resolvemos ir a um restaurante japonês. O chef aparentemente gostava de criar tipos (muito) diferentes de sushi, e nós não podíamos escolher, então não tínhamos ideia do que esperar. Quando os pratos finalmente vieram, a Lisa naturalmente me pediu para descrever os sushis. Olha… Em Português já teria sido difícil. Em Inglês foi simplesmente impossível. As minhas descrições eram algo como: “bom, tem arroz, talvez algum tipo de peixe, e alguma coisa vermelha e estranha, meio gostamenta, em cima de tudo… só come”. Não ajudei muito, mas nos divertimos horrores.


A Lisa ficou nos EUA por quarto meses e eu aprendi muito com ela.

Ela queria ir a NY antes do Natal para “ver as luzes” e conseguiu. Ela viajou para a Disney. Ela explorou New Haven. Ela fez amigos.

A Lisa é a pessoa mais corajosa que eu já conheci. Ela me ensinou que os nossos limites estão todos dentro da gente e que cabe a cada pessoa decidir o que fazer com eles. Ela me mostrou que, mesmo quando se está assustado, basta dominar o medo e se consegue ir tão longe quanto se queira. E, mais importante do que tudo, ela me ensinou que o importante não é enxergar, mas sentir.


Obrigada, Lisa. Sinto muito a tua falta.

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