"Será que a foto acima [a do post 'antes e depois'] não existe apenas pela apatia e pelo contentamento simples de um povo sem vontade de mudar?"
Essa foi a pergunta que motivou os escritos abaixo. O objetivo não é mudar o pensamento de ninguém, mas dialogar e contribuir de alguma forma para uma reflexão coletiva. Enjoy!
Em 1975, após quase cinco séculos de colonização e 15 anos de guerra, Angola conquistou a sua independência. No mesmo ano começou a guerra civil, que terminou apenas em 2002, ou seja, há sete anos. Quando falamos nos angolanos, portanto, falamos de um povo que está "livre" há menos de uma década. Falar em apatia e em falta de vontade de mudar me parece um tanto quanto precipitado se levarmos esse contexto em consideração.
O contexto. Ah, o contexto.
Aqui em Angola eu vejo muitas coisas que me chocam. E vejo as pessoas que vivem aqui encararem algumas dessas coisas que me deixam boquiaberta como situações normais e rotineiras. Já contei em outro post que as crianças daqui sofrem terríveis violências quando estão na escola e que, apesar disso, elas continuam indo. Em uma das escolas em que fomos, perguntamos a um grupo de crianças se elas preferem os professores que batem ou os que não batem. A resposta: os que batem porque, assim, elas aprendem.
Já tive altos debates, quase embates, por causa desse assunto com uma das pessoas que trabalha na empresa. Ela insiste em dizer que os professores daqui são pessoas malvadas e cruéis, que batem nas crianças para saciar os seus instintos sádicos. Eu, em contrapartida, bato na tecla de que eles ensinam como sabem, como aprenderam. Nem ela me convence nem eu a convenço.
Pois bem. Eu nasci e fui criada no Brasil. Estudei em ótimas escolas e em uma excelente universidade. Tenho acesso à internet desde o tempo em que se batia papo no mIRC. Já li um monte de livros, desde porcarias medonhas até clássicos consagrados. Tenho NET em casa, mesmo que só assista Sportv. Não viajei muito, mas conheço um bocado de lugares, pessoal ou virtualmente.
Essa é uma parte de quem eu sou e a minha visão de mundo está inevitavelmente ligada a essas e outras questões. Eu sei que as pessoas têm o direito à liberdade e considero importante lutar por ela. Eu sei que existem métodos de ensino mais eficazes do que a palmatória. Eu acredito que as crianças devam ser escutadas, respeitadas e protegidas. Eu tenho vontade e creio que é possível mudar para melhor não só a educação de Angola, mas a realidade do povo angolano como um todo.
Eu penso tudo isso e penso porque posso pensar. Penso porque conheço uma realidade diferente dessa aqui. Penso porque sei que outras nações, inclusive a minha, já passaram por momentos semelhantes a esse. Penso porque tenho acesso a uma série de informações e vivências que me permitem acreditar nisso.
Pausa.
Fala de uma professora participante da pesquisa: "as crianças não têm acesso a computador, a televisão... é difícil pra elas entenderem coisas sobre um mundo com o qual não têm contato".
Retomada.
Como acusar um povo de não ter vontade de mudar se talvez esse povo nem sequer saiba que existem outras possibilidades? As crianças não gostam de apanhar, e o dizem, mas acreditam que esse é o único meio de aprender. Será que o povo sabe que existe outro meio de existir, outra forma de viver?
O contexto. Ah, o contexto.
Quantas e quantas vezes me peguei julgando o que ocorre aqui unicamente a partir da minha visão limitada de mundo? Inúmeras!
E não é contradição com o que eu disse alguns parágrafos acima: visão limitada, sim. Porque tudo aquilo que eu citei como sendo parte da minha formação também me limita. Toda visão de mundo é limitada. Na medida em que eu olho o mundo a partir de um determinado ponto, deixo de enxergá-lo por outro. Como dizer, então, que a minha visão é melhor ou mais correta do que a de outra pessoa? Não seria menos temerário dizer que ela é simplesmente diferente?
Talvez sim, talvez não, mas acho que é algo a se pensar...
Sei que em um ponto concordo contigo, querido cunhado: "o difícil é lutar por reais mudanças, lutar por educação e progresso, por partilha e justiça". É difícil mesmo. Difícil, não impossível.
E, para encerrar esse post meio capenga com chave de ouro puro, deixo aqui um pequeno texto do meu querido Eduardo Galeano, que parece fazer a cada dia mais sentido.
En algún lugar del tiempo, mas allá del tiempo, el mundo era gris. Gracias a los indios ishir, que robaron los colores a los dioses, ahora el mundo resplandece; y los colores del mundo arden en los ojos que los miran.
Tício Escobar acompaño a un equipo de la televisión, que viajó al Chaco, desde muy lejos, para filmar escenas de la vida cotidiana de los ishir.
Una niña indígena perseguía al director del equipo, silenciosa sombra pegada a su cuerpo, y lo miraba fijo a la cara, de muy cerca, como queriendo meterse en sus raros ojos azules.
El director recurrió a los buenos ofícios de Tício, que conocía a la niña y entendía su lengua. Ella confessó:
- Yo quiero saber de que color ve usted las cosas.
- Del mismo que tú - sonrió el director.
- Y cómo sabe usted de qué color veo yo las cosas?