segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Filosofia de beira de estrada

O período que a gente passa na estrada, entre uma escola e outra, entre uma viagem e outra, dá um bocado de tempo para pensar na vida. Resolvi, então, compartilhar alguns desses pensamentos com vocês...

Angola é um país que enfrentou duas guerras sucessivas, que deixaram marcas indeléveis na população. A primeira foi a guerra pela independência. Angola era colônia de Portugal e queria deixar de ser. Para isso, a população pegou em armas. A segunda foi a guerra civil, que durou mais de 25 anos e que terminou apenas em 2002, com um saldo superior a 500.000 mortos.

A Província do Moxico, onde estou agora, foi uma das mais atingidas pela guerra civil. Foi nela, inclusive, que a guerra acabou, com a morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA, que está enterrado em um cemitério aqui perto. O prédio que fica em frente ao hotel (foto ao lado) é todo cheio de buracos, inteiramente cravejado por balas. Estou aqui há menos de 24 horas e já vi uma quantidade enorme de pessoas mutiladas. Herança cruel das minas terrestres.

Angola vive hoje uma (pseudo)democracia. O ditad..., ops, presidente está no poder há exatos 30 anos e 18 dias. Há fotos dele espalhadas por todos os lugares. Todos mesmo! Em todas as cidades que conheci vi outdoors com a foto do dito cujo. A tal foto está em qualquer lugar em que se entre: repartições públicas, escolas, bares, lojas... As pessoas andam com camisetas estampadas com a foto. É uma coisa de louco. Eu brinco com as gurias dizendo que essa foto deveria ser souvenir daqui porque é uma das imagens mais representativas do país.

Não sei se vocês sabem, mas Angola tem uma riqueza natural gigantesca. São montes de diamantes, petróleo, ferro, minerais... A maioria da população obviamente não tem acesso a essa riqueza. Nós, que somos brasileiros, compreendemos bem como funciona esse processo. Mas, por uma série de motivos que não cabe elencar agora, as coisas aqui me saltam ainda mais aos olhos do que no meu país. Poderia filosofar um bocado sobre isso, mas por ora vamos nos concentrar um bocadinho nas minhas angolandanças.

Angola é um país em (re)construção. Todo mundo vem pra cá para ganhar dinheiro. Chineses, portugueses, brasileiros... O povo vem, explora e vai embora. É como eu disse logo que cheguei: aqui dá pra enriquecer fácil e rápido. E o povo, que tanto lutou por independência, continua sendo escravo do capital estrangeiro mesmo tendo total possibilidade de se sustentar. O que me tira o chão é que as pessoas investem bilhões de dólares em coisas absolutamente supérfluas e esquecem do mais básico. A esmagadora maioria dos angolanos não tem acesso a água, luz, saúde e alimentação. Escolas, então, nem se fala. Vocês viram algumas fotos, mas, assim como acontece com o sol laranja, elas não fazem jus à realidade. E, vá lá, até dá pra entender que os estrangeiros façam isso. Mas e o Governo? O que o Governo angolano ganha com tudo isso? Dinheiro? Os bolsos deles já estão cheios...pra que mais?!

E querem saber de uma coisa? O Governo de Angola não sabe o poder que tem nas mãos. Os caras que mandam, aqueles que ficam sentados em escritórios luxuosos, dizendo o que pode e o que não pode ser feito, o cara da foto... Eles não têm ideia do poder que está ao alcance de um estalar de seus dedos! Porque com tudo isso, com todas essas dificuldades, com toda a humilhação, com toda a miséria... Mesmo com tudo isso, e com muito mais, eles têm um país que é feito pelo sangue e pelo suor de pessoas que têm uma sede de conhecimento incrível. Pessoas que têm uma vontade gigantesca de serem melhores do que lhes disseram que poderiam ser. Pessoas que dariam a vida, literalmente, para construir um país que poderia fazer inveja a qualquer potência mundial.

Dizem que criança aqui é como capim: cresce em qualquer lugar e tem onde quer que se olhe. Pois essas crianças, essas que são como capim e que crescem em qualquer lugar, acordam às 4h da manhã e vão para a escola carregando suas cadeiras nas costas, pois não há troncos suficientes para sentarem embaixo das árvores onde têm aula. Elas saem de casa sem comer e caminham 5, 6, 7...10 quilômetros para chegar na escola, onde não recebem merenda. Elas muitas vezes não têm sapatos, nem lápis, nem cadernos, mas têm uma vontade enorme de aprender. E é isso o que as faz ir para a escola todos os dias. Escola que não tem paredes, nem banheiros, nem quadro, nem carteiras, mas que tem alguns poucos professores que, quando aparecem e quando não estão embriagados, ensinam. Ensinam como podem. Ensinam como sabem. Ensinam como aprenderam quando também eram crianças. E as crianças apanham, são violadas, têm seus direitos mais básicos desrespeitados, mas continuam indo. E vão porque sabem que aquela provavelmente é a única oportunidade que têm para serem mais do que o país lhes permitiu ser.

E o cara aquele da foto, se soubesse disso, se fosse inteligente, se andasse pelo seu país em vez de viver em um castelo de cartas cercado por soldadinhos de chumbo, se daria conta de que tem um exército poderosíssimo nas mãos. Ele adora exércitos, então iria gostar dessa novidade. E se, por fim, ele realmente amasse o seu país, como proclama amar, daria a essas crianças condições mínimas para que se desenvolvessem bem. Não pelas crianças, que eu sei que ele não se importa com elas, mas pelo país. Essas crianças são como capim, não precisam de muito. Elas não são assim tão caras. Se com o pouco que elas têm já dão espetáculo, imagina se tivessem acesso ao mínimo necessário.

E, então, o cara da foto, que assumiu o poder dizendo que os jovens poderiam mudar o país, faria jus ao primeiro presidente, chamado de Herói Nacional (aquele do feriado de 17 de setembro), que dizia que a revolução e a mudança da nação começam pela educação dos jovens.

Mas, pensando bem, talvez seja disso que o cara da foto tenha medo... Os jovens REALMENTE podem mudar Angola. E é possível que demore um tempo, mas, por tudo que já vi aqui, eu acredito, eu sinceramente acredito, que um dia eles irão fazê-lo.

9 comentários:

  1. Airi, que forte esse texto. Agora confirmei as minhas suspeitas de que deverias mesmo ir para a OUNU, para falar essas verdades e não aquelas politiquices que fazem com que ainda exista uma Angola assim, o Zaire, a Etiópia e tantos locais que poderiamos ficar toda a noite para os enunciar. Parabéns pela sensibilidade e as palavras!

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  2. Agora falando sério (e com muitas palavras), afora tua Filosofia de Beira de Estrada, faltou um simples complemento a cerca do que realmente permeia o pensamento africano. Os governantes ou ditadores, ou como queiras chama-los, pensam apenas em deter o poder por 30, 40, 50 anos, tempo de suas vidas e aproveitar ao máximo isso, desfrutando de tudo aquilo que seus governados, como que seus bonecos de brinquedo nunca terão sequer conhecimento. Esquecem-se, entretanto, que ao passarmos desta existência, sobra o solo por onde andamos e o país no qual vivemos. Este permanece imutável, principalmente no seu inconsciente coletivo. Tanto que após estes 30, 40, 50 anos, ou antes na normal ocorrência de um golpe, outro governante igualzinho senta-se em seu pequeno trono, desfrutando seu pequeno poder. Tênue e risível a ponto de necessitar da força para se manter. E, assim, passam-se os anos. O solo por onde andamos e o país onde vivemos, permanece igual, realmente imutável, mesmo que as pecinhas vivas que o compõe tenham sede de progredir. Imutável como o gostinho de simplesmente ter o poder. É assim em todas as republiquetas, é assim na África, principalmente nos países nascidos na guerra e no golpe decorrente da colonização exploratória sacramentada na pilhagem e escravização. É uma pena. Com realmente muito pouco, se produziriam grandes mudanças. Qual o custo de um quadro negro? Qual o custo de um giz? Em um lugar que não tem nada, isso representa toda a diferença. Entretanto, o socialismo que teima em manifestar-se na minha filosofia estradeira, é superado e temo que este gostinho de poder, que ai sepulta qualquer possibilidade de desenvolvimento nos termos como conhecemos, dentro de minha realidade, não me permita compartilhar teu pensamento ou, mesmo se houvesse possibilidade, colocá-lo em prática. Sou capitalista por nascimento e vocação. Meu wisky é Escocês e meu vinho é Chileno. Por outro lado, de nada adiantaria andar de BMW em uma estrada de chão. Pequenas iniciativas, realmente são a chave e conscientização em massa a saída. Porque o mundo não se junta para eliminar Darfur, ou matar a fome da Etiópia ou Somália e entretanto se comove com uma bomba nos USA a ponto de invadir um país na Ásia e construir uma prisão em Cuba? O preço que nosso amado Sapo Gordo pagará por um caça francês (me pergunto para que), ou que Mr. Obama gasta em um tanque de guerra, com certeza eliminaria um campo de refugiados, construiria habitações para estas pessoas,colocaria escolas ou ensinaria estes um ofício. Mas não é assim que acontece. a mudança tem que vir de dentro, nascer não só da sede de aprender, mas da fome absurdamente grande e devastadora que aponta para a mudança total, sem esperar dos outros o entendimento da realidade local. Nestas situações que se criam os verdadeiros Líderes, na acepção pura, romântica e ideal da palavra. Antes que me perguntes, não bebi nem fumei, estou trabalhando e interrompi uma apelação relativamente importante para acrescentar veneno e indignação às tuas idéias. Bj e como dizem na França: "Viva la Revolucion"!!!

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  3. Realmente, Palmeira, estás de parabéns pelo texto, pela sensibilidade, pela lucidez!

    Um beijo! Te cuida!
    Clarina

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  4. Uau! Forte, profundo e muito bem escrito! É por essa e tantas outras que eu não tenho dúvida do teu potencial. Quanto poder de argumentação!!

    Uma das coisas que mais me marcaram logo quando nos conhecemos foi uma conversa que tivemos pelo msn. Tu me perguntaste quais os meus planos para futuro e eu falei que não conseguia planejar muito longe, quem sabe um ano, dois. Devolvi a pergunta e tu foste muito objetiva em relação ao teu: "Eu vou ser secretária geral da ONU!" Eu tive dois pensamentos com essa resposta: um era "Bah, como ela pensa longe!" e o outro, "Quanta prepotência!" hehehehehe. Aos poucos fui te conhecendo e hoje tenho certeza que se esse for realmente o teu desejo, tu podes chegar lá! É só querer! :)

    Eu espero estar perto para ver! :)
    Parabéns!
    Beijo,
    Loira (L)

    ps.: o que deu no teu cunhado? ;) hehehe

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  5. Bah, fiquei um tempo distante em função do turbilhão de coisas que estão acontecendo aqui (te conto outra hora por e-mail!). Só posso dizer, depois de ter ficado 2h me atualizando com as tuas angolandanças que sim, aquele projeto do mestrado - que tu ainda não podia me dizer o que era - mas que ia te deixar mais próxima de ser a secretária geral da ONU, é verdade! Orgulho transbordante!!! Saudades! Beijos Eguia

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. SACANAGEM!
    Eu nunca tenho tempo pra ler teu blog e vivo escutando das gurias que o último post foi hilário!!!! Que eu tenho que ler!
    Aí, quando finalmente eu deixo a pilha de trabalho acumular mais um pouquinho pra poder ler teu blog me deparo com um texto arrasador que me fez ficar com os olhos cheios d´água...
    Tô de mal! Nunca mais volto aqui ;-)

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  8. Airi, fiquei contente por ter recebido o seu convite para conferir as atualizações do "Angolandanças" e por chegar aqui e dar de cara com este texto. Construir um Estado-nação moderno, seja seguindo preceitos democráticos e liberais, seja buscando a construção de um projeto nacional alternativo, será sempre um tremendo desafio. Acho que pela simples razão de ter conseguido preservar a integridade de suas fronteiras, depois da independência, e por possuir um território com muitas riquezas, Angola poderá superar as heranças do colonialismo e ser um ator importante no cenário africano e internacional. Com riquezas parecidas, Nigéria e África do Sul estão despontando. Não podemos saber qual seria o melhor regime político para os países africanos. Seja lá qual for, interessa que esteja de acordo com a história e a cultura desses países. As aberrações de que você falou têm a ver, acho, com a Guerra Fria, com o colonialismo, com a geração que participou das lutas pela independência. Para que uma elite caia e outra possa emergir, a máquina da história terá que se mover por mais um tempo. Esperamos que a nova geração tenha sonhos e um novo projeto nacional.

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