Sexta-feira em Angola é dia do homem. Todas as sextas-feiras os homens ficam liberados para sair e fazer farra enquanto suas mulheres ficam cuidando dos afazeres domésticos. Eu sempre brinco dizendo que os angolanos devem ser todos homossexuais, já que os homens podem sair e as mulheres não. Vai entender...
Não existe um dia da semana reservado para a mulher.
Aqui a poligamia masculina é permitida e, em muitos casos, incentivada. À mulher cabe a tarefa de aceitar tudo calada, enquanto carrega os filhos nas costas e o resto na cabeça. Não existe essa história de cavalheirismo: se há algo pesado a ser carregado, quem o faz é a mulher. O homem segue de mãos vazias, enquanto aprecia a paisagem.
Mulher é objeto, propriedade.
No início da coleta de dados, ainda no Cunene, presenciei uma das cenas mais chocantes da minha vida. Já comecei a contar esse episódio várias vezes aqui no blog, mas sempre desisto antes de chegar ao fim. Ainda hoje, quando lembro do ocorrido, meu rosto arde como brasa. É a tal da ferida difícil de cicatrizar...
Estávamos em uma sala de aula entrevistando um grupo de quatro mães, quando um senhor, fardado com o uniforme da polícia, entrou abruptamente no recinto. Olhei pra ele, me apresentei e perguntei em que podia ajudar. Com modos rudes e sem prestar atenção ao que eu dizia, ele mandou que eu continuasse o meu trabalho, apontou para duas mulheres e mandou que elas saíssem da sala. Eu expliquei que a entrevista não iria demorar muito, mas ele me interrompeu e, apontando para as duas, disse convicto: "são minhas! essa e essa são minhas! as outras duas não...". E riu.
Enquanto falava, se aproximou de uma delas e começou a desferir-lhe fortes tapas nos braços. A mulher ria encolhida, tentando se proteger, enquanto olhávamos atônitas para a cena. Quando cansou de bater na primeira mulher, ele olhou para nós, deu vários tapas de satisfação em sua própria barriga e explicou que estava com fome e que as mulheres deveriam ir logo preparar sua comida. Ficamos sentadas, sem fala, com o rosto em fogo, misto de ódio e humilhação, enquanto aquela figura patética continuava em nossa frente proferindo absurdos e agredindo "suas" mulheres. Alguns instantes depois, aparentemente convencido de que as duas não tardariam a ir para casa, ele se dirigiu à porta. Antes de sair, porém, voltou e deu uma bofetada violenta no rosto da segunda mulher, que, constrangida, baixou a cabeça.
Meu estômago deu uma volta tão violenta quanto a bofetada e, com os olhos cheios d'água, tive que me segurar para não partir para cima do animal que saía da sala. Naquele instante, nenhum método de tortura parecia suficiente para a dor que eu desejava que aquele monstro sentisse.
Ele bateu a porta e ficamos as seis mergulhadas em silêncio naquela sala que parecia pequena demais para tanto constrangimento, para tanta impotência, para tanta humilhação. Sem saber o que fazer, dissemos que elas poderiam ir para casa se quisessem. Elas ficaram. Nós ficamos. Seis mulheres em uma sala partilhando, sem palavras, um momento de dor profunda. Dor rotineira para quatro delas. Dor revoltante para as outras duas.
Chocante! Horrível! Que raiva! :(
ResponderExcluirNossa, que horror! Deve ter sido bem dificil se controlar pra não dar uma surra nesse "homem" :/
ResponderExcluirMeu amor,o que posso dizer? Seguramente nada que possa aliviar a dor imensa que sentiste e pior espicaçada pela impotência diante de uma injustiça brutal sem chances de intervir. A verdade minha querida é que em um punhado de horas fizeste uma viagem no tempo e te está sendo tremendamente dificil compreender o que está se passando. Elas sorriem mesmo quando apanham, as crianças sorriem quando castigadas, os professores sorriem quando castigam, com tanto sorriso bater é um privilégio de quem bate e se não bater é diferente e desprezivel. Para viver uma cultura tem de mergulhar fundo dentro dela, as amostras chocantes só podem ser avaliadas dentro do seu contexto. Com os nossos valores não temos como avaliar a dor, mas fica certa a tua dor foi muito, muito mais forte do que a dor que elas próprias sentiram, se é que sentiram.
ResponderExcluirhaaaaa Angola... algumas datas e hábitos, mixados com nossa educação e cultura, acho que daria um caldo!!!! huahuahahuaha, bj. tem video novo no orquiutes..
ResponderExcluirDepois deste primeiro impacto acho que podes estar pronta para assimilar o segundo. Vamos lá. Não sei qual foi a estratégia para convidar as duas mulheres para participar da entrevista. Seja qual for porém, duvido que elas tenham ido sem a permissão do seu "dono". Ou seja o "carrasco" deu a sua permissão. Mas na terra do "dia dos homens" e do "dono das suas mulheres" o homem mais homem é aquele que assim se apresenta. Imagina o nosso "herói" dizendo aos outros que tinha dado permissão às suas mulheres para participarem da entrevista. Os que não deixaram vão gargalhar na cara dele, chamando-o de frouxo e sei mais o que,em suma ridicularizando-o. Para reaver sua machisse,vai a escola e recolhe "seus pertences",aí entras em cena, uma mulher interferindo pelas outras mulheres. Ele faz valer sua superioridade, e no último momento, dá-lhe uma bofetada, a mulher talvez nem tenha pestanejado, talvez até tenha sorrido, mas as marcas dos dedos não ficaram em
ResponderExcluirtua face, ficaram lá, indeléveis, bem dentro de ti... Daí o teu remoer... Estas cenas,meu amor, marcam fundo mas não é culpa nossa e nem tem a dimensão com as quais se apresentam para nós, eis que simplesmente refletem a rotina de um contexto, deprimente para nós, normal para eles. Quando alcançares o distanciamento poderás sentir melhor, exercitar uma crítica isenta da emoção, sem abdicar de nehum dos teus pontos de vista, sem se deixar abraçar pela neutralidade dos apáticos. Segue firme,minha pequena, a caminhada é árdua mas necessária. Beijos, cinco beijos e o dodói vai passar. Pai
Não, pai, a atitude dele não teve a ver com os amigos, e sim com a cultura, que nesse caso diz respeito a algo muito mais amplo. E não, pai, o "dodói" não vai passar. No dia em que passar é porque algo errado aconteceu.
ResponderExcluirInacreditável! Que horror, Palmeira! Tô chocada com esta história!
ResponderExcluirBjs
Fiquei com muita raiva só de ler!!! Tô muito indignada com isso!!! Triste!!!
ResponderExcluirQuando eu me lembro daquele telefonema e do teu nome ser a única ideia que me vinha à cabeça e ao meu coração!!!!
ResponderExcluirAcho que eu não tinha mesmo ideia do TUDO que irias aprender, experienciar e viver!
Mas é isto aí! Imersão na cultura? Indignação frente ao desrespeito aos direitos humanos? É vida!
Só imagino o teu seminário na Pós sobre tudo isto e o quanto ainda eu e os cepianos vamos aprender contigo.
Orgulho de ti já sentimos! Vontade de vomitar lendo isto? nem pergunte!!!